OBSERVATÓRIO NEGRO

Advocacia Política - Socioeducação e Pesquisa -
Articulação Política - Participação e Controle Social
Ana Paula Maravalho, Ângela Nascimento, Claudia Alves Gomes, Ciani Sueli das Neves, Elizabete Godinho, Maria Conceição Costa, Maria de Jesus Moura, Mércia Alves, Rebeca Oliveira Duarte, Rivane Arantes

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Cabelos de Assolan!?!? Importa se o racismo é discreto ou escrachado?


08 de abril de 2004

Rebeca Oliveira Duarte*


De “sem intenção” o inferno racista está cheio. Bem que poderia ser esse o dito popular para tratar da espécie brasileira de racismo. E, como a percepção de nossa sociedade é grosseira, calejada diante de tão díspares desigualdades raciais, as mais contundentes expressões discriminatórias chegam a passar como sutis manifestações do já famoso racismo à brasileira.

É com essa “sutileza”, com a delicadeza de um rinoceronte passeando em loja de artefatos de porcelana, que a Assolan atualmente exibe seu comercial, confiante na impunidade, em que bebês aparecem com perucas “black” feitas de bombril, ops, feitas com a lã de aço assolan. E nós assistimos pasmadas/os a esse passeio estrategicamente desastrado.

Sim, isso não se dá à toa e o tropeço não é acidental. Pensemos bem: qual a campanha possível para retirar da Bombril, sua concorrente, toda a referência quanto ao produto lã de aço, já tornado sinônimo, como gilete e navalha? Ora, a briga não é fácil; ninguém vai ao mercado comprar lã de aço - vai comprar bombril. A saída: lutar pelo lugar do sinônimo. Aí é que entram os cabelos de assolan e o discreto estardalhaço racista que a empresa e sua agência publicitária andam fazendo.

Quem é negra/o sabe muito bem o que é ter seu cabelo apelidado de uma marca de palha de aço. A tática da desagregação do ser negro está em tornar seu corpo comparável a isto ou aquilo, objeto e rótulo, animalização ou inferiorização para a manutenção da estereotipagem racista. Daí, apelidos como cabelos de assolan serem imediatamente absorvidos pelas/os espectadoras/es, que ainda acham lindo os bebês engatinhando e sorrindo inocentes da mensagem que está escancarada no comercial. Nada é subliminar: os cabelos black ali são feitos sim de lã de aço, e a “revolução” tão prometida da marca referida é a substituição dos “cabelos de bombril” pelos “cabelos de assolan”. Em breve, meninos na escola brincarão entre si e dirão que Zezinho tem cabelo igual ao dos meninos do comercial; racistas “cordiais”, como certos colunistas de grandes jornais brasileiros, baterão às costas de negros e dirão nas mesas de bares “e aí, negão de cabelo assolan?”, certos de que se trata de uma saudável brincadeira entre amigos; e o arsenal das possibilidades do seu uso não pára, porque expressões discriminatórias, como o bombril, são de mil e uma utilidades.

A partir disso, o país terá uma nova referência em lã de aço, e a mesmíssima e rediviva maneira de tentar submeter uma população imensa de negras/os a conceitos de inferioridade pelo seu fenótipo racial.

A luta pelos direitos civis da população negra no Brasil passa, necessariamente, pelo combate a danos, como esses, derivados de uma estrutura cultural-valorativa discriminatória, desigual e injusta. Os padrões sociais que se hegemonizam na interpretação e avaliação dos valores que orientam o racismo precisam ser diretamente enfrentados por todos os meios possíveis: de boicote a ações judiciais. O que não é mais possível, o que se torna insuportável, é a manutenção de estereótipos que geram e/ou mantêm modos ilimitados de opressão, privação e marginalização da negra e do negro em nosso país.

Os direitos civis incluem, dentre outros, o direito à honra e à imagem. A representação midiática do povo negro consta como um dos meios de violação dos direitos civis da pessoa negra e, conseqüentemente, de violação aos direitos humanos, pelo incitamento de conotações pejorativas aos aspectos fenotípicos negros, qual a referida propaganda, entre outras que freqüentemente assistimos no horário nobre entre novelas de maioria branca e reality shows recheados de “brincadeiras” racistas.

Certo, é peculiar do racismo brasileiro, dissimulado e acobertado por práticas culturais, que aspectos fenotípicos sejam associados a elementos que buscam desumanizar a pessoa negra. Seja a cor, seja o nariz, boca ou cabelos, a intenção racista é depreciar o corpo negro e assim sujeitá-lo à inferiorização enquanto ser humano. Mas, dentre nós, ninguém assume essa “intenção”, e os crimes cometidos assim passam longe de terem a devida responsabilização jurídica por prática de discriminação racial. Por isso mesmo, precisamos riscar de vez dos nossos dicionários antidiscriminatórios o termo “sutil” ao tratar dessa nossa espécie de racismo, e denunciá-lo incontinente ao seu menor movimento que, de tão grosseiro, é costumeiro em esmagar as reivindicações do povo negro pelo seu reconhecimento.

Lembro por fim que Bertold Brecht deixou-nos um pedido que se nos torna uma ordem: desconfiemos, desconfiemos sempre do que aparenta singelo e habitual. Não aceitemos o que é de hábito como coisa natural; e, principalmente, carreguemos a certeza de que nada é natural, nada é impossível de mudar.

A começar da marca de lã de aço que usamos em nossas casas.

*Rebeca Oliveira Duarte é articuladora e advogada do Observatório Negro.

Extraído de http://www.afirma.inf.br/htm/ensaios/ensaios.htm

A Banalidade do Mal: Racismo Institucional e Execução Sumária de Adolescentes Negros no Brasil

Afrobrasileiros e suas Lutas
- Ana Paula Maravalho[1] -


Carlos Rodrigues Junior, 15 anos, Denis Henrique Francisco dos Santos, 13 anos e Djair Santana de Jesus, 16 anos, não se conheciam. As circunstâncias de suas mortes, no entanto, uniram estes adolescentes pelos laços de um parentesco que remonta à origem do Brasil, país que, em décadas nem tão remotas assim, orgulhava-se em se autodenominar "o país do futuro". Os adolescentes, respectivamente residentes em Bauru (SP), Recife (PE) e Salvador (BA) foram assassinados pela Policia Militar de seus Estados, nos meses de dezembro de 2007 e janeiro de 2008. Tinham em comum, além dos sonhos característicos desta faixa etária, o fato de serem negros e pobres, de estarem desarmados e de não oferecerem nenhum risco à policia no momento em que foram abordados.

Carlos Rodrigues Junior estava em sua residência, na madrugada do dia 15 de dezembro de 2007, quando seis policiais militares (o tenente Roger Marcel Vitiver Soares de Souza, 31 anos, o cabo Gerson Gonzaga da Silva, 42 anos, e mais os policiais Emerson Ferreira, 35 anos, Ricardo Ottaviani, 34 anos, Maurício Augusto Delasta, 33 anos, e Juliano Arcangelo Bonini, 34 anos ) entraram em seu quarto e procederam a uma sessão de tortura que, ao fim de 30 choques elétricos, levaram o adolescente à morte. Denis Francisco dos Santos foi espancado por alunos da Policia Militar (Baltazar Arantes da Silva, que confessou ter dado uma gravata no adolescente, e mais Ganduso Pereira Diniz, Frederico Renan de Albuquerque Lima e Eduardo de Souza Xavier, suspeitos de omitir socorro à vítima), e morreu por asfixia, em conseqüência dos golpes recebidos, quando participava de um prévia carnavalesca no bairro do Cordeiro, em Recife, acompanhado de seus familiares, no dia 13 de janeiro de 2008. Djair Santana de Jesus foi baleado pelas costas, arrastado e novamente baleado na cabeça em seu bairro, no Pelaporco, em Salvador, em uma ação da Policia Militar, em 15 de janeiro de 2008. Nos três casos, a veemência dos protestos das familiares das vitimas (todas mulheres) que presenciaram os assassinatos - denunciando in locco e depois, corajosamente, nos meios de comunicação - são contestadas pela fraca argumentação policial de "fatalidade", nos casos de Carlos e Denis, e de"reação à prisão", no caso de Djair - apesar do tiro nas costas. Para as mulheres que denunciam os crimes, resta a incômoda situação de testemunha ameaçada, ou ainda de vitima da violência e achincalhe policial, como no caso de uma das tias de Djair, baleada nas nádegas.

A morte dos três adolescentes confirma tristemente as estatísticas do Mapa da Violência 2006, que situa o Brasil em 3° lugar no assassinato de jovens, num ranking de 84 paises. Dentre os jovens assassinados, jovens negros têm um índice de vitimação 85,3% superior aos jovens brancos. Além disso, o estudo aponta que o crescimento do numero de homicídios nas ultimas décadas, no Brasil, explica-se exclusivamente pelo aumento de homicídios contra a juventude: enquanto as taxas de homicídios entre os jovens aumentaram de 30,0 para 51,7 (por 100.000 jovens) no período de 1980 a 2004, neste mesmo período as taxas de homicídio para o restante da população diminuíram de 21,3 para 20,8 (por 100.000 habitantes). Outro dado importante é que a faixa etária em que ocorre um significativo aumento no numero de homicídios é a de 14 a 16 anos.

O Mapa da Violência é um estudo que se propõe a conhecer e dimensionar a violência no Brasil, oferecendo dados que possibilitem a orientação de políticas publicas destinadas ao seu enfrentamento. Neste sentido, as informações sobre a importância do fator racial na vitimação de jovens, aliado à constatação da magnitude do impacto do homicídio de jovens no aumento de homicídios da população como um todo, e finalmente, da tendência de diminuição da faixa etária destes homicídios não deixam duvidas quanto ao caráter genocida em relação à população negra que a violência vem assumindo ao longo das ultimas décadas no Brasil. Esta reflexão é de importância capital para os estados onde ocorreram os homicídios dos três adolescentes. Em lugares onde a policia distorce suas funções para cometer um crime bárbaro - assassinar um adolescente indefeso, através de choque elétrico, armas de fogo ou com as mãos nuas - é preciso reconhecer que há uma inversão da ordem que ameaça a sustentabilidade moral do poder. Torna-se, então, imperioso responder a questões tais como: o que leva agentes do Estado a executar de forma tão natural meninos negros? O que os motiva? Porque se sentem autorizados a cometer estes crimes?

Segundo o Mapa da Violência, em 2004 Pernambuco ocupava o 1° lugar entre os estados brasileiros com maior taxa de homicídios da população total, e o 2° lugar entre as maiores taxas de homicídios da população jovem, superando de longe São Paulo (10° lugar na taxa de homicídios da população total e 9° na taxa de homicídios de jovens) e Bahia (22° lugar na taxa de homicídios para a população total e jovens). A clareza dos dados estatísticos, no entanto, não tem sido suficientes para orientar a ação governamental. O Plano de Segurança Publica do estado - batizado de Pacto pela Vida - ignora completamente estes dados em seu diagnostico, impossibilitando a adoção de medidas de enfrentamento à violência racial, sobretudo quando esta violência encontra-se enraizada na ação da própria policia.

O assassinato do garoto Denis Henrique é praticamente uma reedição de outro caso ocorrido em 2006, quando um grupo de adolescentes negros foi abordado pela Policia Militar no centro do Recife, durante o carnaval. Após serem espancados, os jovens foram obrigados a entrar no rio Capibaribe; em conseqüência dos ferimentos, um deles morreu afogado. Durante o processo de julgamento dos policiais responsáveis pela ação, outro jovem do grupo morreu em circunstâncias não explicadas, às vésperas de prestar depoimento. A não punição dos culpados até o presente momento revela a outra face do sistema de segurança publica: a omissão da justiça em apurar casos nos quais vitimas fatais são pessoas negras, resultando na ineficácia da prestação jurisdicional em razão do pertencimento racial dos cidadãos. Assim, percebe-se que tanto a persistência da violência racial na policia quanto o desinteresse explicito em combater o racismo entranhado na estrutura mesma do estado encontram suas raízes no racismo institucional, definido como o "fracasso coletivo de uma organização em prover um serviço profissional adequado às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes ou comportamentos que denotam discriminação resultante de preconceito inconsciente, ignorância, falta de atenção ou estereótipos racistas que colocam minorias étnicas em desvantagem".

A exclusão histórica do sujeito negro do acesso a bens e direitos, a desconsideração de sua personalidade jurídica nas instituições republicanas no Brasil e a adoção de teorias oriundas do racismo cientifico no século XIX como base do senso comum teórico no aparelho de segurança publica, alimentados na atualidade pela volta da idéia da "criminalidade nata da infância negra" - defendida no pos-abolição por Nina Rodrigues e recuperada pelas campanhas de redução da maioridade penal - consolidaram a distorção da "presunção de culpabilidade" em relação à pessoa negra, ou seja: diante do aparelho de repressão estatal, pessoas negras serão priorizadas em abordagens policiais, em atos de tortura e ações que resultam em morte, pois na percepção dos agentes do Estado, o perfil do suspeito é a pessoa de sexo masculino, jovem e negro. A equação: democracia racial X estereótipos racistas X violência policial tem significado, para a população negra, um pesado saldo de execuções sumarias com efeito genocida, elementos presentes no assassinato dos três adolescentes.

Na verdade, a compreensão do caráter estrutural do racismo institucional permite o estabelecimento da responsabilização da própria autoridade publica omissa na adoção de políticas eficientes de enfrentamento à violência racial. Não basta apenas punir os responsáveis diretos pelos crimes - embora, sem o cumprimento desta etapa fundamental, qualquer perspectiva de prevenção de outros crimes seja impossível.

Ao relatar e analisar o julgamento de Otto Adolf Eichmann, funcionário do governo nazista responsável pela logística do transporte de prisioneiros para campos de concentração, Hannah Arendt se deteve sobre a questão da responsabilidade dos vários níveis de execução de um crime de Estado, concluindo que o fato de estar mais "próximo ou distante do efetivo assassinato da vitima nada significa no que tange à medida de sua responsabilidade. Ao contrario, no geral o grau de responsabilidade aumenta quanto mais longe nos colocamos do homem que maneja o instrumento fatal com suas próprias mãos". Esta compreensão nos leva ao reconhecimento de que os funcionários que executam tais crimes acreditando desempenhar suas funções não podem ser qualificados de "monstros", nem "pervertidos, nem sádicos"; ao contrario, são pessoas "terrível e assustadoramente normais", pois sua ação se encaixa na lógica de um sistema; é, portanto, uma ação esperada, e geralmente, encorajada institucionalmente. O que assusta nesta situação não é a possível "anormalidade" da conduta de quem comete estes crimes, mas ao contrario, a sua absoluta normalidade, "mais apavorante do que todas as atrocidades juntas", pois implica na existência de um criminoso que "comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que esta agindo de modo errado", mesmo porque sua ação nada mais é que uma conseqüência lógica do sistema no qual esta inserido. Ela cumpre uma trajetória que tem inicio na própria formação policial, carregada de estereótipos em relação à população negra, e que encontra eco na sociedade, onde os estereótipos criminalizantes e desumanizadores dirigidos a negros e negras são reproduzidos e alimentados nos meios de comunicação, na educação formal e nas relações sociais. Ao priorizar a pessoa negra em suas abordagens, os policiais militares não inventam uma regra, mas seguem um roteiro pré-estabelecido, agem de acordo com o que aprenderam. Funcionando como um reflexo condicionado, a conduta racista na abordagem policial não exige reflexão por parte dos policiais que a praticam. E é exatamente na consistência superficial desta atitude que reside o problema, porque o mal que a anima se justifica pela idéia do dever cumprido, de um certo heroísmo mesmo. É, portanto, extremamente banal, e exatamente por isso pode se alastrar facilmente, indefinidamente.

Por outro lado, é exatamente a normalidade desta conduta que impede que ela seja combatida e punida - afinal, o extermínio (no nosso caso, o da população negra) é o resultado esperado, e mais que isso - o resultado programado em um Estado que se constituiu a partir do pressuposto da exclusão do contingente negro de sua população. Daí porque a punição dos agentes estatais responsáveis pelo extermínio físico deste contingente é a exceção. Mudar esta lógica é possível, mas exige como pressuposto o restabelecimento da moralidade no poder. Não de uma moralidade abstrata, mas aquela nascida do que Hannah Arendt conceitua como amor mundi - ou seja, a atitude de admiração pelas obras das gerações humanas passadas (considerando a humanidade em toda a sua diversidade) e desejo que tais obras sejam preservadas para as gerações futuras. Esta moralidade exige que o Estado abandone o propósito político inconfessado de exterminar contingentes inteiros de sua população, e assuma o compromisso de preservar para o futuro também as crianças, adolescentes e jovens negros, como parte integrante e constituinte da própria nação brasileira. Extinta esta parte fundante, é a própria nação que corre perigo de sobrevivência no futuro.

A mudança desta perspectiva esta ao alcance do poder publico atualmente em exercício. Políticas publicas de combate ao racismo devem levar em conta o enfrentamento incansável ao racismo institucional, a mudança consciente de padrões de comportamento, de regras internas e de relacionamento com o publico, enfim, da mudança de paradigmas que permitam considerar a pessoa negra, em qualquer situação que se apresente, como detentora dos mesmos direitos e merecedora do mesmo tratamento dispensado às pessoas brancas. No cerne destas políticas deve estar a promoção de uma educação em todos os níveis que privilegie a capacidade reflexiva. Pois, como reflete ainda Hannah Arendt, se "a maldade não é condição necessária para fazer o mal", a capacidade reflexiva, a busca empreendida pelo pensamento ativo é, sem duvida, um antídoto poderoso contra a banalização do mal.

O Movimento Negro em Pernambuco, chamado a contribuir na elaboração da Política de Segurança Publica, elegeu entre outras medidas especificas, a adoção do Programa de Combate ao Racismo Institucional no âmbito do governo estadual e articulação de ações semelhantes com os governos municipais. Acreditamos que esta medida possibilitara ao Estado responsabilizar-se concretamente pela erradicação da violência racial, apontando para um novo paradigma do respeito aos direitos da população negra.

Referências Bibliograficas

ARENDT, Hannah, Eichman em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal - São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.268, 299-300.

BARROS, Geova da Silva, Racismo Institucional: a cor da pele como principal fator de suspeição, dissertação de mestrado em Ciências Políticas - UFPE, fevereiro 2006

BENTO, Maria Aparecida Silva; BEGHIN, Nathalie, Juventude Negra e Exclusão Radical, IPEA - Políticas Sociais, acompanhamento e analises, 11/ago/2005, p.194-197

CORREIA, Adriano, O pensamento pode evitar o mal? O pensamento experimentado como uma atividade reflexiva pode ser um obstáculo ao mal, Revista Educação Especial - Biblioteca do Professor n° 4 - Hannah Arendt pensa a Educação, Ed. Segmento, 2007, p. 46-55.

LIMA, Maria Lucia C. e XIMENES, Ricardo, Violência e morte: diferenciais da mortalidade por causas externas no espaço urbano do Recife, 1991, Cadernos de Saúde Publica, Rio de Janeiro, 14(4):829-840, out-dez.1998.

SALES JUNIOR, Ronaldo Laurentino, Raça e Justiça: O mito da democracia racial e o racismo institucional no fluxo de Justiça, tese de doutorado em Sociologia - UFPE, fevereiro de 2006.

WAISELFISZ, Julio Jacobo, Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura - OEI, fevereiro de 2007.


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[1] Mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Paris, França e advogada do Observatório Negro (PE).

Fonte: Artigo publicado no Jornal Irohin: comunicação a serviço dos Afro-brasileiros, Brasília, ano XII, nº22, p. 4, em março de 2008.

Foto: extraída de www.estadao.com

DISCRIMINAÇÃO RACIAL Falácias na análise da questão racial brasileira

Por Ana Paula Maravalho em 22/8/2006

A revista Veja da semana passada trouxe matéria sobre o recém-lançado livro do jornalista Ali Kamel, diretor-executivo de Jornalismo da TV Globo, Não somos racistas, no qual, segundo o periódico, o autor desbanca, em "análise demolidora", "as falácias da política de cotas raciais" ("Contra o mito da ‘nação bicolor’", pág. 126). Nos gráficos que ilustram a resenha, a revista afirma que "os movimentos que reivindicam cotas no mercado de trabalho para negros dividem a população brasileira em duas raças" (brancos, 52%, e negros, 48%), e em seguida que "o jornalista Ali Kamel observa que esta conta ignora os pardos – os numerosos filhos da miscigenação brasileira. Os números corretos seriam outros: brancos, 52%; negros, 6%; pardos, 42%". A revista repete aqui, pela enésima vez, um expediente falacioso ao qual recorre a cada vez que se posiciona contra as cotas: o de confundir o leitor, ao utilizar, errônea e propositadamente, o termo "negros" para significar "pretos".

Como veículo jornalístico que é, elaborado por profissionais competentes no manejo das informações, e mais ainda, já alertada por leitores atentos às numerosas reincidências no malogro determinado que comete, a revista e seus editores sabem muito bem que "os movimentos que reivindicam cotas" utilizam o termo "negro" para indicar a população formada pela soma de "pretos" e "pardos", que vêm a ser os termos utilizados pelo IBGE para classificar a população afro-descendente no Brasil. Considerando que os efeitos do racismo no Brasil atingem indistintamente estes dois grupos (ao contrário do que supõe a teoria da democracia racial), os movimentos negros (atenção ao plural!), assim como vários pesquisadores de órgãos oficiais no país e membros da academia utilizam o termo "negro" significando a soma dos percentuais relativos aos autodeclarados "pretos" (6% da população brasileira) e "pardos" (42% da população), totalizando 48% de "negros".

O debate em relação às cotas é legítimo e saudável num país em que pouco se discutem os efeitos de um racismo permanente, contundente e cruel com suas vítimas. Ser contra cotas é um ponto de vista, que deve ser respeitado quando vem ao debate com limpeza de propósitos. No entanto, a utilização de argumentos falaciosos como o acima descrito, empregado pela Veja, mais uma vez, com o único objetivo de desinformar e manipular o leitor, revela a pobreza de argumentos de quem procura, desesperadamente, tapar o sol com uma peneira.

Definição de branquitude

O livro de Ali Kamel tem, no entanto, um mérito indiscutível: o de escrever com todas as letras a teoria abraçada pelo diretor-executivo de Jornalismo da TV Globo, que não deve estar longe das diretrizes da própria emissora. E, a julgar pelo entusiasmo do jornalista que escreveu sobre o livro, também é a opinião da revista em questão. A base da teoria é a mesma que embala a nação brasileira desde suas origens: a de que não somos racistas porque somos um país de mestiços. Daí a necessidade de explicar, ou melhor, denunciar que "não há negros no Brasil".

É verdade que a composição racial brasileira não é fácil de explicar. Sem dúvida, a categoria de "negros" não é homogênea. Tampouco a de "brancos", o que leva à constatação de que, ao lado do aparentemente insolúvel problema de "quem é o negro no Brasil", há que se discutir a não menos complicada definição de "quem é o branco no Brasil". Sobretudo quando os argumentos contrários às cotas se concentram na negação da bipolaridade racial.

A definição da branquitude sofreu modificações ao longo de nossa história. Inicialmente reservada aos originários dos países da antiga Europa, os limites do conceito foram se alargando para absorver povos que, em princípio, encontravam-se do lado de lá do perímetro racial. É assim que pessoas que em outros países possuem identidade racial própria (e que sofrem discriminação por esta razão) podem legitimamente – e só no Brasil – reconhecer-se e afirmar-se "brancos". É verdade que, para os descendentes destes povos – judeus, árabes, orientais – a democracia racial funciona perfeitamente. Ainda que preservem valores culturais específicos, a teoria da mestiçagem os absorveu por completo, equiparando-os aos "brancos" em tudo.

Revolta "sincera"

Oposto ao contingente "branco" – real ou virtual – encontra-se sua antítese, o "negro". E aqui também encontramos a influência da teoria da mestiçagem. No Brasil, é negro quem não pode ser considerado branco. A definição é bastante larga para permitir que negros suficientemente claros para cruzar a "linha da cor" possam se autodefinir como brancos. Num país onde ser negro sempre significou estar associado a tudo que é negativo, cruzar a "linha da cor" tornando-se branco é a única alternativa permitida pela idéia da mestiçagem. E é justamente aí que a política de cotas causa uma revolução, ao possibilitar que esta "linha" possa ser cruzada no sentido inverso: tornar-se negro passa a constituir, sim, uma opção de futuro.

Os brancos que se posicionam contrários às cotas o fazem por vários motivos. Entre eles está o de crer, com sinceridade, no mito da democracia racial, na relação harmônica e perfeita entre as diferentes raças em nosso país. É possível, e mesmo provável, que uma pessoa branca creia nisto, sinceramente. Motivos não lhe faltarão: afinal, a questão racial nunca foi uma prioridade em sua vida – nunca foi discriminada por sua cor, e se já discriminou alguém, nem percebeu (contar piadas sobre negros ou repetir alguns "provérbios" oriundos da infinita e sempre correta sabedoria popular não vale, não é? É só brincadeirinha, sem intenção de magoar ninguém!).

Uma pessoa branca poderá viver sua vida inteira sem ser obrigado a definir ou declarar sua branquitude, a não ser no censo. Dificilmente terá passado pela experiência de ter seus erros justificados pela sua cor, ou de ver seus méritos – mesmo que excelentes – serem menosprezados também em função de sua cor. Uma pessoa branca, mesmo pobre, sempre pôde se identificar pela sua cor com os heróis e heroínas de sua infância, fossem eles personagens de um filme, da novela, do livro de História ou mesmo de um livro de historinhas para crianças.

Uma pessoa branca pode, sinceramente, achar que nunca fez distinções entre brancos e negros. Esta nunca foi uma questão importante para ela, até surgirem as discussões sobre cotas para negros na universidade e no mercado de trabalho. A revolta é então, legitimada pelo sentimento de se sentir usurpado em seu sagrado direito à igualdade por um grupelho que, de uma hora para outra, resolveu importar de outras paragens conflitos até então inexistentes no Brasil. Uma pessoa que pense desta maneira pode mesmo estar sendo sincera em sua revolta contra os que advogam que a política de cotas é a única solução para o problema racial brasileiro. Pois, segundo tudo em que acreditam, a verdadeira solução para o sucesso está no esforço pessoal, no mérito. Estão aí para provar todos os negros que alcançaram posição de destaque em suas carreiras: a Glória Maria, a Zezé Mota, o Lázaro Ramos, isso para não falar nos inúmeros cantores e jogadores de futebol negros, que ganham milhões!

Motivo de alerta

O único problema é que, se estamos falando de democracia racial mesmo, não deveríamos poder "identificar" a Glória Maria, a Zezé Mota, o Antônio Pitanga, o Lázaro Ramos, a Deise Nunes (para aqueles que não se lembram, ou não sabem, a nossa única Miss Brasil negra, "eleita" em 1986). E se dermos ainda mais tratos à bola, veremos que entre os exemplos de negros bem-sucedidos há muito poucos no nosso círculo íntimo de amizades. À medida em que subimos os degraus sociais, "muito poucos" vira eufemismo para "nenhum". Pois é muito possível, e mesmo provável, que uma pessoa branca das classes média e alta, no Brasil, atravesse toda a sua vida sem jamais cruzar com pessoas negras no seu círculo social.

E aqui não falo do "álibi negro", aquele que os brasileiros costumam tirar da cartola cada vez que precisam explicar por que não são racistas – aquela empregada que é tratada como se fosse da família, aquele porteiro com quem conversa todos os dias, aquele menino negro a quem sempre dão um trocado no sinal. Falo de pessoas com quem podem se relacionar de igual para igual, com quem tenham estudado no mesmo colégio, com quem dividam, no mesmo nível, um posto no trabalho, com o mesmo salário, o mesmo carro. Tudo bem, vai. Um vizinho no mesmo prédio, na mesma rua, já vale. Ou a médica com quem costumam se consultar. O pediatra dos seus filhos. O dentista. Quantas destas pessoas são negras?

Se os exemplos nacionais e pessoais são tão poucos, já não seria um motivo de alerta de que esta democracia racial não é tão democrática assim? Sim, pois numa democracia racial digna deste nome os negros que teriam "conseguido" seriam tantos que não deveríamos ser capazes de nomear, isolar, apontar "a" exceção que confirma a regra. Que regra? A de que para "conseguir", para "chegar lá", ser branco é um dos requisitos. E ser negro atrapalha.

Discurso e política

A não ser que haja outra explicação. A de que se os negros não conseguem é porque há alguma coisa errada com eles, não com a sociedade. Deve ser porque eles são incapazes, preguiçosos, burros mesmo. Feitos para ser dominados. Geneticamente dotados para a pobreza e o crime. Bingo! Taí a explicação!

O problema com esta explicação é que ela não é, digamos, original. Não é uma decorrência lógica dos fatos, não é uma conclusão a ser tirada da realidade dos negros no Brasil. Na verdade, ela é a própria espinha dorsal do racismo, organizado como doutrina "científica" no século 19 e sistematizado como pedra de toque da concepção de nação brasileira: uma nação mestiça a contragosto, mas que poderia almejar seu lugar ao sol, entre os países civilizados, desde que promovesse o embranquecimento paulatino de sua população. E é a partir desta idéia sistematizada – a da mestiçagem como uma etapa necessária para promover o embranquecimento, de forma a que não haja mais negros no país – que se estabeleceram e se mantêm até hoje as relações raciais por aqui.

O embranquecimento não se resumiu aos discursos dos intelectuais da época, como Sílvio Romero, Oliveira Viana, Nina Rodrigues. Foi mesmo política oficial de governo, como quando o Estado brasileiro promoveu a entrada em massa no país de colonos europeus para ocupar os postos de trabalho liberados a partir da abolição da escravização, pagando a viagem e em muitos casos cedendo terras, insumos e máquinas, ao mesmo tempo em que fechava os portos aos africanos (Decreto 528, de 28 de junho de 1890); ou quando o Itamaraty, em 1921, emitiu ordens explícitas para que as embaixadas brasileiras nos Estados Unidos negassem visto aos afro-americanos que pretendiam comprar terras em Mato Grosso.

Anacrônico e deficiente

O embranquecimento é também a política dominante nos meios de comunicação brasileiros, que conseguiram, pela invisibilização da população negra (pretos e pardos, indistintamente) promover a imagem do país como formado quase 100% por brancos – basta ver as páginas das revistas de moda, de "boa forma" e muitas das novelas e minisséries televisivas.

Diante deste quadro, para não falar nas pesquisas que, desde 1990, vêm mostrando as diferenças abissais entre os índices de desenvolvimento humano de negros e brancos no Brasil, caem todos os argumentos que se posicionam contra as cotas por entenderem que em nosso país não há racismo. Esta discussão já foi superada, inclusive, pelo próprio Estado, que em 1995, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, reconheceu que somos, sim, um país racista. O Estado brasileiro também se comprometeu a empregar os esforços necessários para reduzir o abismo social causado pela discriminação racial histórica no país, em cumprimento aos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário, e que incluem as ações afirmativas como instrumento de ação legítima contra o racismo.

O livro de Ali Kamel já nasce, portanto, anacrônico e deficiente em seus argumentos. Pode-se ser contrário às cotas por vários motivos. Negar a existência do racismo no Brasil, no entanto, beira o revisionismo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A Consciência Branca da Globo


Não havia data melhor. Em plena semana da Consciência Negra, a teledramaturgia global reafirma, mais uma vez, a pura reprodução de imagens, palavras e ideais racistas em horário nobre.
Ao elencar a atriz negra Thaís Araújo para protagonista de sua novela das nove, a TV Globo, através de seu funcionário Manoel Carlos, parecia querer responder ao Estatuto da Igualdade Racial idealizado pelo movimento negro que não seria necessário estabelecer cotas para atrizes e atores negros; bem, parece não ter sido à toa que justamente no momento de uma decisão histórica quanto ao conteúdo do referido Estatuto, a Globo tenha lançado ao ar duas novelas com protagonistas negras, atrizes que inclusive têm uma postura racial condizente às suas trajetórias, como são Thaís Araújo e Camila Pitanga. Nas entrelinhas, previa-se uma forjada justificativa à sociedade das "desnecessárias" cotas raciais para os meios de comunicação, já que este espaço vem sendo ocupado pelo núcleo negro da Globo. Convenhamos, uma jogada de mestre; assim, evita-se o "mal maior" para a Consciência Branca do comando global, que é obedecer a lei e fazer cumprir os direitos da pessoa, da população e dos povos negros.
Pois então que nesta semana, no capítulo que foi ao ar na noite do 17 de novembro, com precisão cirúrgica o autor desenhou a cena mais representativa possível da ópera racista contra o verdadeiro protagonismo negro. A suposta protagonista da novela, a personagem de Helena, após ser retirada de seu núcleo familiar negro para transitar exclusivamente num núcleo branco e assim ser sujeita a traições e humilhações, é posta de joelhos diante de uma de suas antagonistas brancas - já que, para uma negra, não basta uma só antagonista, devendo vir elas em número de três: a amante do marido, a filha mimada e infantilizada do marido e a ex-mulher do marido. Não apenas de joelhos, deve pedir perdão de cabeça baixa; não apenas de cabeça baixa, sob o olhar duro e inflexível de sua então dominadora; não apenas isso, como se já não fosse o bastante, deve pedir perdão e ter por resposta uma bofetada no rosto. Para finalizar a cena, a personagem desabafa com uma das melhores amigas que "devia ser assim".
A idéia de protagonista negra, na Globo, enfim foi definida claramente. Uma heroína que, se inicialmente surgia diante de um drama familiar, afirmando um núcleo negro protagonista, como âncora, marco e raiz, veio sendo reduzida dramaturgicamente a pobre vítima de suas três antagonistas brancas, tendo estas enfim recebido mais espaço de visibilidade que a suposta protagonista. O papel, de central, tornou-se periférico, apoio para a virada de jogo das outras atrizes, que passam a receber os aplausos da população e das "críticas" noveleiras de plantão, prontas para limar a atriz negra por seu papel "sem graça".
Ou talvez, pensa o autor que pode salvar o papel de Helena pondo-a no lugar em que acha pertencer à mulher negra. Agora sim, a Globo assinou embaixo de suas verdadeiras posturas ideológicas - mais diretamente, de seu racismo.

Rebeca Oliveira Duarte
Advogada e Cientista Política do Observatório Negro