08 de abril de 2004
Rebeca Oliveira Duarte*
De “sem intenção” o inferno racista está cheio. Bem que poderia ser esse o dito popular para tratar da espécie brasileira de racismo. E, como a percepção de nossa sociedade é grosseira, calejada diante de tão díspares desigualdades raciais, as mais contundentes expressões discriminatórias chegam a passar como sutis manifestações do já famoso racismo à brasileira.
É com essa “sutileza”, com a delicadeza de um rinoceronte passeando em loja de artefatos de porcelana, que a Assolan atualmente exibe seu comercial, confiante na impunidade, em que bebês aparecem com perucas “black” feitas de bombril, ops, feitas com a lã de aço assolan. E nós assistimos pasmadas/os a esse passeio estrategicamente desastrado.
Sim, isso não se dá à toa e o tropeço não é acidental. Pensemos bem: qual a campanha possível para retirar da Bombril, sua concorrente, toda a referência quanto ao produto lã de aço, já tornado sinônimo, como gilete e navalha? Ora, a briga não é fácil; ninguém vai ao mercado comprar lã de aço - vai comprar bombril. A saída: lutar pelo lugar do sinônimo. Aí é que entram os cabelos de assolan e o discreto estardalhaço racista que a empresa e sua agência publicitária andam fazendo.
Quem é negra/o sabe muito bem o que é ter seu cabelo apelidado de uma marca de palha de aço. A tática da desagregação do ser negro está em tornar seu corpo comparável a isto ou aquilo, objeto e rótulo, animalização ou inferiorização para a manutenção da estereotipagem racista. Daí, apelidos como cabelos de assolan serem imediatamente absorvidos pelas/os espectadoras/es, que ainda acham lindo os bebês engatinhando e sorrindo inocentes da mensagem que está escancarada no comercial. Nada é subliminar: os cabelos black ali são feitos sim de lã de aço, e a “revolução” tão prometida da marca referida é a substituição dos “cabelos de bombril” pelos “cabelos de assolan”. Em breve, meninos na escola brincarão entre si e dirão que Zezinho tem cabelo igual ao dos meninos do comercial; racistas “cordiais”, como certos colunistas de grandes jornais brasileiros, baterão às costas de negros e dirão nas mesas de bares “e aí, negão de cabelo assolan?”, certos de que se trata de uma saudável brincadeira entre amigos; e o arsenal das possibilidades do seu uso não pára, porque expressões discriminatórias, como o bombril, são de mil e uma utilidades.
A partir disso, o país terá uma nova referência em lã de aço, e a mesmíssima e rediviva maneira de tentar submeter uma população imensa de negras/os a conceitos de inferioridade pelo seu fenótipo racial.
A luta pelos direitos civis da população negra no Brasil passa, necessariamente, pelo combate a danos, como esses, derivados de uma estrutura cultural-valorativa discriminatória, desigual e injusta. Os padrões sociais que se hegemonizam na interpretação e avaliação dos valores que orientam o racismo precisam ser diretamente enfrentados por todos os meios possíveis: de boicote a ações judiciais. O que não é mais possível, o que se torna insuportável, é a manutenção de estereótipos que geram e/ou mantêm modos ilimitados de opressão, privação e marginalização da negra e do negro em nosso país.
Os direitos civis incluem, dentre outros, o direito à honra e à imagem. A representação midiática do povo negro consta como um dos meios de violação dos direitos civis da pessoa negra e, conseqüentemente, de violação aos direitos humanos, pelo incitamento de conotações pejorativas aos aspectos fenotípicos negros, qual a referida propaganda, entre outras que freqüentemente assistimos no horário nobre entre novelas de maioria branca e reality shows recheados de “brincadeiras” racistas.
Certo, é peculiar do racismo brasileiro, dissimulado e acobertado por práticas culturais, que aspectos fenotípicos sejam associados a elementos que buscam desumanizar a pessoa negra. Seja a cor, seja o nariz, boca ou cabelos, a intenção racista é depreciar o corpo negro e assim sujeitá-lo à inferiorização enquanto ser humano. Mas, dentre nós, ninguém assume essa “intenção”, e os crimes cometidos assim passam longe de terem a devida responsabilização jurídica por prática de discriminação racial. Por isso mesmo, precisamos riscar de vez dos nossos dicionários antidiscriminatórios o termo “sutil” ao tratar dessa nossa espécie de racismo, e denunciá-lo incontinente ao seu menor movimento que, de tão grosseiro, é costumeiro em esmagar as reivindicações do povo negro pelo seu reconhecimento.
Lembro por fim que Bertold Brecht deixou-nos um pedido que se nos torna uma ordem: desconfiemos, desconfiemos sempre do que aparenta singelo e habitual. Não aceitemos o que é de hábito como coisa natural; e, principalmente, carreguemos a certeza de que nada é natural, nada é impossível de mudar.
A começar da marca de lã de aço que usamos em nossas casas.
*Rebeca Oliveira Duarte é articuladora e advogada do Observatório Negro.
Extraído de http://www.afirma.inf.br/htm/ensaios/ensaios.htm
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