05/07/2004
Em “A Busca de um caminho para o Brasil. A trilha do círculo vicioso”, Helio Santos cita essa frase de um ancião do povo africano masai, dita no relato para o historiador John Rowe sobre a peste bovina que assolou o continente africano. Como a morte do rebanho foi devastadora, o ancião proferiu essa alegoria que serve muito bem como cenário ao nosso quadro político de discussão sobre as políticas de cotas para negras e negros na Universidade, em cargos públicos e na mídia.
Os depoimentos dos “anti-cotas”, ultimamente veiculados na imprensa, são taxativos na demonstração de como a faixa social privilegiada – os brancos – ou candidata a privilegiada – os não-negros e não-índios em geral – “esqueceu de voar”, qual abutre habituado ao chão, diante de farta alimentação mórbida. Acostumada a pertencer inerte perante o racismo estrutural, mantém assim a polaridade incluídos/excluídos como algo perfeitamente natural na sociedade brasileira. Ante qualquer possibilidade de mudança nessas relações, mesmo quando a possibilidade ainda se encontra no campo das propostas, percebe, apavorada, que terá de ver o país numa outra perspectiva, menos tacanha, menos medíocre. Novamente os abutres: ver pela perspectiva do vôo, limpando o organismo depois de devorar, por tanto tempo, a comida apodrecida da desigualdade.
Exemplo desse pavor foi a entrevista concedida ao JB há mais de ano pelo diretor Daniel Filho, na qual opinou sobre as cotas para artistas negras/os na televisão. O diretor diz que “A cota também é restritiva porque, se aplicada rigidamente, obriga a criar um tipo de programa que foge da realidade”. É bastante estranha a sua noção de realidade brasileira: um lugar em que não existem pessoas negras (não está, portanto, em pelo menos metade da população do nosso país); lugar onde inexistem negros sujeitos da História; lugar onde só protagonizam profissionais de elite (“Estão estreando a novela Chocolate com Pimenta, que se passa nos anos 20 no Brasil. Que colocação tinham os negros nesta época? Eram advogados, entravam na escola de Medicina?”)! Estranha mesmo essa realidade paralela ao segundo maior país negro do mundo.
Tentando provar como o racismo na televisão não é tão agressivo, cita a presença de Camila Pitanga. Certamente, não teria nenhuma dificuldade em citar outros talentosos artistas negros. Difícil seria contar todos os artistas brancos que circulam em novelas e propagandas, pois lhes faltariam os dedos...aí o diretor estaria seriamente encurralado por seus próprios argumentos.
Vê-se quanta raiva e indignação as propostas de políticas de ação afirmativa, em especial as cotas, podem gerar. É que esse debate incomoda demais quem está acostumado a viver de maneira privilegiada nesse Brasil devastado. Como a peste bovina do final do século XIX, na África, o racismo brasileiro, dissimulado e cínico, faz da terra brasilis um quadro desolador de exclusão e miséria em que estão, por um lado, os que por ele perecem, e, por outro, os que dele se alimentam e os que assistem passivamente à cena, esperando apenas por seu momento de refeição.
Voar depois de tanto tempo é, de fato, muito difícil aos abutres. Mais difícil, porém, é o país continuar aceitando esse banquete mórbido de quinhentos anos. Esqueceram como voar? Que reaprendam.
* REBECA OLIVEIRA DUARTE – advogada popular e educadora
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